Para onde vão os passarinhos quando morrem  

Posted by: Rose Porciuncula in


Pra onde vão os passarinhos quando morrem

ano de 1988
Estávamos jogando futebol no quintal. Meu irmão e eu, numa loucura alucinada, decidindo alguma final de algum mega hiper campeonato mundial (como o mundo era bem simples nessa idade, jamais pensávamos em algum campeonato universal, mas se fosse hoje seria algum campeonato universal dimensional alpha atemporal e claro, o mais importante possível).
Numa jogada cheia de raça e vontade um forte chute foi desprendido pelo adversário, amado e odiado; meu irmão, em direção à meta do humilde, simples, desconhecido mas surpreendente goleiro eu. Com reflexos apurados e corajosos, me atiro em direção à bola fazendo uma magnífica defesa, espalmando o tiro do atacante direto na gaiola do passarinho.
ano de 1986
Meu pai alimentava uma paixão tradicional por canários, periquitos, mandarins e calafates. Nesta época dedicava-se apenas aos canários.
O Amarelinho(que era meu e cantava mais que todos os outros), o Laranjinha(que era de meu irmão, e as vezes cantava de maneira impressionante, mas nao tão frequente) , o Filhotinho (que havia nascido em casa), a Mãe-do-Filhotinho(que era o da minha mãe), o Tião (um canário-da-terra que apareceu voando todo abestalhado e perdido aqui no quintal, provavelmente havia escapado de alguma outra gaiola ), o Marronzinho e a Marronzinha.
Dia sim dia não, que era a maneira q minha mãe encontrou de dividir por igual as tarefas da casa entre os filhos, cuidava dos bichinhos. De manhã acordava umas 7 e ia direto pro salão de festas onde eles passavam a noite, abria a porta e já escutava-os assustados com o barulho. Passarinho é um bicho muito sensível e delicado, um grande susto pode até mata-los do coração, mas eu não sabia disso ainda.
Ficavam em cima e uma mesa, enfileirados e próximos, mas não muito próximos pois se uma gaiola encostasse na outra eles se pegavam de bico e podiam se machucar feio.
Pegava gaiola por gaiola e começava pela comida, trocando o alpiste velho pelo novo, depois a vitamina de canário e removia alguma fruta ou verdura que havia sido dada no dia anterior. Em seguida trocava a água dos bebedouros, indo com todos até a pia do banheiro, desmontando-os deixando a água velha escorrer pelo ralo ao mesmo tempo que ia limpando com uma escova de dentes usada. Na sequência enchia um por um com água limpinha, e tinha que ter a habilidade de fechar com bastante água dentro, daquele jeito que dá orgulho.
No final de tudo era trocar o jornal cheio de fezes e restos de comida por outro novinho e especialmente dobrado na bandeja de metal e pendurar a gaiola no quintal.
Verificava o tempo. Previa se ia chover ou não, onde iria bater mais ou menos sol e escolhia em qual prego pendurar. Cada passarihno tinha seu lugar marcado, tanto em tempos de sol como chuvosos. Sabia que o Amarelinho ficava entre a janelinha do banheiro do salão e a porta do salão quando estava sol, e entre a janelinha do banheiro da minha mãe e do quarto de tv quando estava chovendo. O Laranjinha, que também era protegido, pegava bons e seguros lugares, e nessa hieraquia de importância pessoal, eles iam ganhando as respectivas paredes do quintal.
Logo que sentiam o ar matinal começavam a cantar…  iam ensaiando ensainado ateh fazer o canto completo, que era o auge, a explosão musical produzida de maneira tão especial por aquela criaturinha agitada. E assim passavam quase toda a manhã; comendo, cantando, pulando, se bicando.  Logo que chegava a tarde, ficavam um pouco mais preguiçosos e se distraiam com outras coisas, como os pardais invasores que vinham roubar os almeirões pendurados próximos aos poleiros, e até mesmo seu precioso alpiste.
Em dias muito quentes, haviam as banheirinhas de plástico, que enchia com água da torneira e derramava boa parte até alcançar o chão da gaiola pendurada, colocando-a estrategicamente ao centro para um gostoso banho.
Terminando a refrescante limpeza, as banheirinhas eram retiradas (em dia de preguiça viravam a noite no fundo da gaiola) e sua água suja derramada nas plantas.
Ao pôr-do-sol, por volta das seis, sete…  os passarinhos eram recolhidos.
ano de 1992
Passarinho apesar de suscetível à morte por susto, vive bastante e sua morte por velhice é bem lenta. Primeiro param de cantar e vão ficando gordos… quando cantam, cantam muito. Depois o canto não vai chegando ao fim e se resume nuns longos piados.
Segundo, ficam cegos e não conseguem mais saltar entre os poleiros. Aí ficam no chão da gaiola, comendo e bebendo nos potinhos especialmente posicionados para suas dificuldades motoras,  porém também fazem cocô no mesmo lugar que caminham. Sem enxergar e sem poder voar, suas patinhas e penas vão se enchendo das próprias sujeiras. De tempos em tempos o passarinho era cuidadosamente retirado da gaiola para uma limpeza delicada das patas e penas. Um banhinho especial.
A terceira fase é mais rápida e objetiva. O pássaro não abre mais os olhos e não come. Fica o dia todo emplumado, dormindo por dias…   ora ou outra mudando de posição, até que ao final de uns 10 dias ele morre.
Era meu dia de cuidar deles, e a cada dia um de nós de sentia aliviado por vê-lo vivo, mas hoje eu o encontrei morto e chorei.
Fiquei sozinho lá com minha dor e peguei meu amiguinho. Sentia-o duro entre os dedos, sem calor, mas com um semblante tranquilo. Era triste, mas ao mesmo tempo bonito,  uma despedida, um laço rompido.
Já havia uma rotina em relação à morte dos canarinhos. Uma rotina criada por mim, diferente de meus pais que embrulhavam num jornal e colocavam no lixo, eu enterrava no jardim da frente.
Coloquei-o cuidadosamente dentro da banheirinha de plástico, peguei a enxadinha e fui até o jardim abrir uma pequena cova ao lado do pinheiro, onde não havia nenhum outro enterrado. Aberto o buraco, depositei com carinho o corpinho morto no fundo e passei a tampá-lo com a terra preta, que caía sobre ele de uma maneira grotesca, cobrindo suas lindas penas amarelas e aos poucos sumindo pra sempre.


Texto de Slachtoffer van de Liefde

This entry was posted on quarta-feira, setembro 07, 2016 and is filed under . You can leave a response and follow any responses to this entry through the Assinar: Postar comentários (Atom) .

2 comentários

lindo texto.
em algumas partes me revi. tambem eu tinha passarinhos, tambem eu lhes fazia um enterro no quintal.
Bom resto de semana.
Pinta

Que bom reler vc...
Saudades! ;)
Bom para vc também!
bj

Postar um comentário